sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A bandalha não sai de graça

Eugênio Bucci - Epoca

Estamos às voltas com essa corrupção que se vangloria de si – e que cobra um preço muito alto


Contam de um empreiteiro que, ao ser perguntado quanto custaria a construção do viaduto, respondeu com outra pergunta:
– É para construir com ética ou sem ética?
Com a capciosa indagação, ele insinuava que, “com ética”, a encomenda custaria mais caro. Por quê? Ora, você já sabe. Trabalhar “com ética” significa seguir à risca tudo o que a lei manda fazer, cumprir as exigências formais de uma licitação pública (sem fazer jogo combinado entre os concorrentes), não contratar trabalho escravo, não jogar lixo nos rios, não enterrar material contaminado, não trapacear. Conclusão: sai mais caro fazer as pontes “com ética”. E dá muito mais trabalho.
Não adianta disfarçar. Não é só o empreiteiro. Somos uma sociedade que acredita – honestamente – nisso. A classe média compra e vende apartamentos e declara valores fajutos. Não são poucos os psicanalistas e terapeutas que adotam duas tabelas paralelas: uma com nota fiscal (“com ética”) e outra sem nota fiscal (“sem ética”), que sai mais em conta. É isso mesmo. Até mesmo o analista, esse profissional que costuma ser uma das últimas esperanças para gente aflita, gente muitas vezes no limiar entre  o desespero e a insanidade, fica à vontade para propor a sonegação fiscal logo no primeiro encontro, como quem pergunta se o outro aceitaria um cafezinho. No senso comum que aí está, sonegar é normal, é saudável, é uma expressão de independência. O negócio é tapear o Fisco. Além de encarecer as coisas, os tributos e, de resto, toda a ética, são neuroses desnecessárias. A vida feliz e os viadutos faraônicos ficam muito mais simples e mais baratos se forem construídos “sem ética”.
Essa mentalidade é persistente, sólida, inamovível. Essa mentalidade está no poder. O pior é que não é fácil combatê-la. Se alguém se levanta contra ela, logo é chamado de bobo, de ingênuo, de moralista ou, mais vexatório ainda, de udenista. Não é por acaso que o adjetivo “udenista” virou uma pecha. A velha UDN, nos anos 1950 e 1960, era um partido de gente rica e conservadora que fez da pregação contra os corruptos seu maior trunfo. A expressão “mar de lama”, tão repetida até hoje, vem daqueles tempos. Carlos Lacerda, um dos mais barulhentos líderes udenistas, falava em “mar de lama” para atacar o governo de Getúlio Vargas. Acontece que, fora a defesa histérica da moralidade pública, a UDN tinha pouco a oferecer. Por fim, apoiou o golpe militar de 1964, que rapidamente cuidou de esfacelá-la sem piedade. Foi patético. Derrotada e destroçada, a UDN sobreviveu no folclore político brasileiro como um sinônimo de hipocrisia de direita. É por isso que hoje, quando querem desqualificar os adversários, os militantes que defendem os corruptos “de esquerda” (os “sem ética” a favor de uma “boa causa”) se põem a xingá-los de udenistas. Pensam que defendem a esquerda, pensam que defendem o governo, mas apenas defendem a corrupção.
E então, você prefere “com ética” ou “sem ética”? Hoje, é como se os governantes, perguntados se podem construir uma sociedade igualitária, respondessem com a mesma indagação do empreiteiro que apareceu no início deste artigo.
– Mas você quer que eu construa a justiça social com ética ou sem ética? Se for com ética, vai demorar mais e vai ficar muito mais caro.
Esse tipo de, digamos, “ideologia do desvio progressista” emplacou de vez, em boa parte porque muita gente “de esquerda” caiu no engodo de que o estado de direito (as leis, as instituições, o governo) nada mais é que um aparato para garantir os privilégios dos mais ricos e dos mais conservadores (os tais dos “udenistas”). Logo, desobedecer à lei é na verdade obedecer à História (com H maiúsculo). É defender os pobres e os oprimidos. Para esses, a corrupção não é corrupção, mas uma tática revolucionária, e os corruptos não são corruptos, mas heróis abnegados (embora estejam se enriquecendo profusa e escandalosamente).
É claro que a corrupção não é uma invenção dos populistas que se dizem “de esquerda”. A corrupção é anterior, muito anterior. A novidade é que hoje estamos às voltas com essa corrupção que se vangloria de si e que, ao contrário do que sempre prometeu, cobra um preço muito alto de cada um de nós. Se alguém ainda duvida, que olhe para a Petrobras, nocauteada pelos ladrões a serviço de forças políticas “progressistas”. Ser contra isso não é ser “de direita”. Ser contra isso se resume a saber que os viadutos, as sessões de psicoterapia e os projetos sociais mais solidários só dão certo de verdade quando são feitos com alguma ética e de acordo com as leis democráticas. A bandalha faz pior e custa mais.